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domingo, 17 de junho de 2012

"As máscaras" de Fernando Pessoa: breve estudo de um soneto em inglês

Fernando Antônio Nogueira Pessoa foi um dos mais importantes escritores e poetas do modernismo em Portugal. Nasceu em 13 de junho de 1888 na cidade de Lisboa (Portugal) e morreu, na mesma cidade, em 30 de novembro de 1935.
Em virtude da morte precoce do pai, o funcionário do Ministério da Justiça e crítico musical Joaquim de Seabra Pessoa, e do recasamento da mãe, a açoriana Maria Madalena Pinheiro Nogueira com o comandante João Miguel Rosa Pessoa, nomeado cônsul interino na África do Sul, Fernando Pessoa  foi morar, ainda na infância, aos seis anos, naquele país africano, mais exatamente na cidade de Durban.  Ali, travou amizade íntima com a língua inglesa, em que exercitou seus primeiros escritos. Tornou-se bilíngue e profundo conhecedor da literatura escrita no idioma de Shakespeare.
Os seus primeiros estudos e os seus primeiros textos são feitos em inglês, idioma que Fernando Pessoa nunca abandonará. É através dele que trabalhará, mais tarde, já em Lisboa, como correspondente comercial. Apesar de vir a adotar para os seus escritos a língua portuguesa, continuará sempre a escrever em inglês, seja nos seus textos críticos e notas íntimas, seja nos seus trabalhos de tradução de poetas ingleses, seja nos seus textos poéticos.
Para dar expansão à sua complexa constituição poética, Fernando Pessoa concebeu vários heterônimos, sendo que os mais famosos são Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Para cada um deles concebeu uma biografia e um perfil poético diferente.
Em vida, o poeta só teve um livro publicado em português, Mensagem (1934), além de duas plaquetas – livros pequenos – de poemas em inglês, intitulados Antinous e 35 Sonnets, ambas em 1918.
Neste estudo, pretendemos estudar brevemente um dos 35 sonetos em inglês escritos por Fernando Pessoa. É provável que o soneto que escolhemos para análise, como de resto todos os demais escritos pelo nosso poeta tenham recebido influência do contato com a obra de Shakespeare.
Inicialmente, vamos tratar, ainda que de maneira breve, da forma poética soneto, tal como a praticam os ingleses. Diferentemente da forma soneto praticada pelos usuários da língua portuguesa, e que derivou da italiana, e que possui quatorze versos distribuídos em dois quartetos e dois tercetos, o soneto inglês possui uma estrofe de doze versos e um dístico.
A palavra soneto do italiano sonetto denota “pequena canção” ou, ainda, “pequeno som”.  O soneto foi criado no começo do século XIII, na Sicília, e, por meio de canções, era apresentado.
Vamos estudar o poema que segue, o oitavo do livro 35 sonnets, traduzido pelo escritor português Jorge Sena.

VIII
How many masks wear we, and undermasks,
Upon our countenance of soul, and when,
I f for self-sport the soul itself unmasks,
Knows it the last mask off and the face plain?
The true mask feels no inside to the mask
But looks out of the mask by co-masked eyes.
Whatever consciousness begins the task
The task's accepted use to sleepness ties.
Like a child frighted by its mirrored faces,
Our souls, that children are, being thought-losing,
Foist otherness upon their seen grimaces
And get a whole world on their forgot causing;
And, when a thought wourld unmask our soul's masking,
Itself goes not unmasked to the unmasking.

VIII

Ah quantas máscaras e submáscaras,
Usamos nós no rosto de alma, e quando,
Por jogo apenas, ela tira a máscara,
Sabe que a última tirou enfim?
De máscaras não sabe a vera máscara,
E lá de dentro fita mascarada.
Que consciência seja que se afirme,
O aceite uso de afirmar-se a ensona.
Como criança que ante o espelho teme,
As nossas almas, crianças, distraídas,
Julgam ver outras nas caretas vistas
E um mundo inteiro na esquecida causa;
E, quando um pensamento desmascara,
Desmascarar não vai desmascarado.

Trad.: de Jorge de Sena

VIII
How many masks wear we, and undermasks,
Upon our countenance of soul, and when,
I f for self-sport the soul itself unmasks,
Knows it the last mask off and the face plain?
The true mask feels no inside to the mask
But looks out of the mask by co-masked eyes.
Whatever consciousness begins the task
The task's accepted use to sleepness ties.
Like a child frighted by its mirrored faces,
Our souls, that children are, being thought-losing,
Foist otherness upon their seen grimaces
And get a whole world on their forgot causing;
And, when a thought wourld unmask our soul's masking,
Itself goes not unmasked to the unmasking.

VIII
Quantas máscaras possuímos
Cobrindo a face da nossa alma e quando
Ela por desejo se desmascara,
E vê a última máscara caída e a face nua?
A verdadeira máscara não está dentro dela mesma
Mas é percebida através de olhos desmascarados
Qualquer que seja a consciência.
Ela aceita a insônia
Como uma criança que teme a sua face refletida
Nossas almas, como as crianças, são pensamentos soltos que
Forçam as diferenças em seus disfarces
E o mundo todo na esquecida causa;
E, quando um pensamento desmascarara a máscara da nossa alma,
Ele não desmascara o que vai ser desmascarado.

Logo acima, apresentamos a proposta de tradução feita pela Profa. Soraya Bernardes. Segundo ela, Mask é a palavra-chave do soneto. Se empilharmos todas as palavras de cada verso que contenha mask (acrescida de sufixo ou prefixo) ficará claro a dialética de sobreposição que se constrói. Transmite-nos a impressão da revelação de nosso sentimento, todas as máscaras estão sendo retiradas uma após a outra, mas no fim a descoberta pode ser falha, sendo que o sentimento pode não ser verdadeiro. A cada máscara retirada vem outra por baixo, denotando que a essência da pessoa é muito difícil de enxergar. As máscaras ajudam a criar disfarces para várias ocasiões no cotidiano e nunca o desmascaramento chega a revelar a alma da pessoa. Separando as palavras masks e suas derivações no soneto, e empilhando-as pode se notar a criação de um escudo...

masks
undermasks
unmasks
(last) mask (off)
(true) mask (feels)
no inside to the mask
looks out of the mask
by co-masked (eyes)
unmask
soul’s masking
unmasked
unmasking

O significado desta última referência retoma como num círculo, num ciclo, a máscara da alma do primeiro verso, a face pura da alma, retratando o seu nascimento e morte.
Como contribuição dos conhecimentos adquiridos durante o curso de Linguística Românica, faremos uma análise do poema que privilegia a etimologia da palavra mask. Podemos perceber que o autor adota como palavra-chave o vocábulo Mask e durante a construção do poema ele modifica o sentido da mesma acrescentando ora sufixo ora prefixo, criando desta forma, um jogo de palavras agradável de ler e ouvir.
Justamente pela agradabilidade encontrada neste jogo, optamos por analisar etimologicamente a palavra Mask e os sufixos e prefixos que acrescentados à mesma derivam outros vocábulos.
A palavra Mask/Masque- substantivo feminino em francês, árabe e espanhol, é basicamente a mesma, havendo uma variação mínima. A forma completa de máscara: masquarizé, masked, masquerié, masquerade, originaram-se do Francês arcaico.
Máscara, a masker, a masquereder, a mask são variantes do espanhol.
Maskharat em árabe.
Estas são as formas totalmente comprovadas.

Derivação: francês = masquerade, espanhol = mascarada
Analisando o prefixo under que acrescido em mask torna-se undermask, sob a máscara.
Under , sob. Inglês moderno Anglo-Saxônico + onder do holandês, undir da Islândia, unter do Alemão.
Un, prefixo de negação do Inglês moderno que acrescido em mask, torna-se unmask, sem mascára.
Co-, prefixo originado do Latim que acrescido em mask, torna-se co-masked, co-mascarado.

Curioso é pensar no sentido da palavra mask tomando em conta a heteronímia de Fernando Pessoa. Os poetas Álvaro de Campos, Bernardo Soares, Alberto Caeiro e Ricardo Reis não seriam as várias máscaras que cobrem a face de Fernando Pessoa?
Andréa Lara
Bruno Wagman
Kilder Silveira
Marlena Aparecida
Mônica Langamer
Valquíria Santana
Referências bibliográficas:

Skeat W. Walter, Concise Dictionary of English Etymology – The roots and origins of the English Language. Words Edition

PESSOA. Fernando. Poemas Dramáticos Poemas Ingleses poemas Franceses Poemas Traduzidos – 3ª edição – Editora Nova Fronteira, 1988.

Resenha do livro: A Semana de Arte Moderna de Neide Rezende

O pequeno livro de Neide Rezende, pertencente à coleção Princípios da Editora Ática, tem 80 páginas e está organizado em oito capítulos. Na Introdução, que equivale ao primeiro capítulo da obra, a autora, doutora em Educação e mestre em Letras pela USP, nos revela que a Semana de Arte Moderna aconteceu entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, reunindo músicos, escritores, poetas, pintores, arquitetos, escultores. O evento vem sendo comemorado desde o ano de 1942, o que coincide com o reconhecimento de que ele favoreceu a consolidação do Modernismo brasileiro e a conquista de nossa emancipação artística.

 Nessa parte da obra a autora nos dá a conhecer as três fases do movimento artístico derivado do evento de 22. Uma primeira fase, de negação e desconstrução dos cânones artísticos precedentes, estaria compreendida entre a exposição de Anita Malfatti, em 1917, e a Semana de Arte Moderna. Entre os anos de 1922 e 1930 a autora revela a existência da fase heróica, marcada pelo experimentalismo e a construção de uma nova estética. A terceira e última fase, de maturação e estabilização duraria os quinze anos seguintes ao ano de 1930.
Já no segundo capítulo trata-se de estabelecer os antecedentes da Semana de Arte Moderna, conforme anunciado no título. Segundo a autora, o ano de 1917 seria o ponto de partido do Modernismo em nosso país, porque deu-se nesse ano a realização da exposição de Anita Malfatti e a aproximação entre Mário e Oswald de Andrade.

Também nesse capítulo a autora trata detalhadamente da exposição de Anita e da polêmica inaugurada pela crítica de Monteiro Lobato, apresentado como baluarte do pensamento oficial. O movimento recebeu muitas críticas e acabou chocando a população como era esperado pelos manifestantes, inclusive o escritor Monteiro Lobato lançou na imprensa um artigo atacando na arte de Anita aquilo que seria o aspecto mais valioso para a atualidade: a proposta de deformação da realidade, o uso da figura somente como pretexto para expressar e a negação da arte acadêmica.

O capítulo terceiro nos informa acerca da organização do evento, motivado pelas comemorações do centenário da independência política do país.  O Teatro Municipal de São Paulo tornou-se a opção escolhida para abrigar a SAM pelo impacto que tal localização teria. Inspirados em festivais como os de Deauville, a elite econômica e a vanguarda cultural buscavam ideias e recursos para a realização do evento que também contou com o patrocínio do presidente de estado, Washington Luís, bem como de Paulo Prado, latifundiário e comerciante de café, e do rico deputado e empresário, José Freitas Valle. O patrocínio viria, portanto, da elite econômica, curiosamente aliada da vanguarda artística. Os protagonistas do movimento, apesar das diferentes personalidades, tinham em comum o intuito de valorizar a cultura nacional, em especial o folclore, e combatiam a cópia e a valorização da arte de outros países. Para os modernistas, a arte tinha de ser entendida como recreação e os artistas tinham que ser criativos.

A SAM contou com o apoio de Graça Aranha, juntamente com a amizade e a disponibilidade financeira da elite. Partiram em busca de outros apoios na cidade do Rio de Janeiro, com o intuito de fortalecer, garantir o brilho e a consistência do evento, por meio das participações de Villa-Lobos e Ronald de Carvalho.

O leitor da obra tem acesso à reprodução da programação musical e das palestras e conferências do evento no capítulo quarto, que apresenta ainda as condições em que muitos dos atos aconteceram: cercados de vaias e pateadas vindas da plateia. O catálogo foi elaborado por Di Cavalcanti e discretamente divulgado pela imprensa. O primeiro dia transcorreu em calma, a apresentação de Graça Aranha e Villa-Lobos foram bem recebidas pelo público Entre os episódios mais divertidos e comentados está a apresentação de Villa-Lobos, de casaca e chinelos, em virtude de uma crise de gota. No segundo dia, a luta do futurismo contra o parnasianismo deixou a platéia em alerta, porque o verdadeiro espetáculo estava para começar, com divergências até mesmo em cima do palco, mas ainda assim se esperava uma reação ainda mais violenta. O papel da imprensa, em especial d’O Estado de S. Paulo, fica consignada nesse capítulo.
   
No capítulo 5 está reproduzido o programa das artes plásticas e a exata distribuição das obras no Municipal, tal como referidas por Yan de Almeida Prado. Nele estão elencados os principais nomes das artes plásticas – consideradas, em especial a pintura, as principais responsáveis pelo impulso de renovação –, da música, da poesia e da prosa.
A pintura modernista estava empenhada em combater a arte acadêmica que caracterizava o realismo, mas não era ainda suficientemente livre para dispensar a forma exterior e lançar-se à abstração pura, que seria incorporada ao movimento mais tarde. Assim, Anita Malfatti encontrou no impressionismo sua forma de expressão. Di Cavalcanti foi influenciado pelo Cubismo e pelo Expressionismo alemão – e desse último incorporará a técnica de aproveitamento do espaço e da deformação da pintura. Di Cavalcanti e Vicente do Rego Monteiro mostram em seus trabalhos a introdução dos temas populares e folclóricos do Brasil. Essa tendência prevaleceu em todas as formas de arte após a semana, e pode-se dizer que Villa-Lobos foi um dos primeiros músicos a realizar com sucesso tal experiência. Vários artistas – pintores, escultores, arquitetos – que expuseram no Teatro Municipal, ou que de outra forma participaram do movimento modernista, acabaram se reposicionando no cenário artístico ou profissional, ao tempo que outros a esse se incorporaram após a semana. 

Até o movimento modernista, pode-se dizer que se partia da realidade exterior para se expressar sentimentos interiores, e agora, todas as artes em sua forma específica de manifestação precisavam se virar pelo avesso para expressar a realidade interior do sujeito, naquilo que Mário de Andrade batizou de “realismo psicológico” ou estabelecimento da ordem do “subconsciente”. Subverte-se a ideia de realidade, que passa a expressar o mundo interior.

A poesia conheceu a libertação da métrica e da rima prefixadas, o que permitiu a expressão da essência do eu do poeta, por meio do verso livre, da rima livre e das imagens simultâneas, o que a colocaria vinculada às percepções cotidianas e às emoções imediatas do poeta.
Quanto à prosa, Oswald de Andrade busca na linguagem cinematográfica uma possibilidade de captação simultânea do real, por meio da composição em cenas. A exemplo do teatro, o cinema não se fez representar no Municipal. Quanto à dança, a falta de referências a Yvonne Daumerie faz crer que não chegou a se instituir em tendência ou em espetáculo de importância para a época. Segundo a autora, “as propostas apresentadas ficaram curiosamente aquém das realizações pelo simples fato de que não se sabia exatamente o que se queriam e quem as expunha não entendia bem o que estava acontecendo.”[1] Tudo isso porque Graça Aranha e Menotti Del Picchia, os porta-vozes do movimento, para o público, não eram seus legítimos representantes.

O capítulo sexto está destinado às considerações finais. A formação moderna no Brasil concilia uma linguagem importada das vanguardas européias, com um conteúdo nativista que resgata as raízes culturais brasileiras. Essas novas tendências estéticas proporcionaram aos artistas modernistas paulistanos uma nova forma na linguagem, além da liberdade de expressão, ousadia e autonomia em seu potencial artístico. Os modernistas conviveram de perto com a arte europeia, seja por contato direto ou por outras fontes de informação. Paris, que era o centro de toda produção artística da época, influenciou os novos rumos da arte brasileira.

Através da divulgação das novidades chegadas da Europa, a arte brasileira começou a se mesclar, originando sua matéria sob a forma de técnica europeia. A absorção desta arte se uniu aos elementos da nacionalidade brasileira, consolidando o processo modernista. Assim, a arte moderna começa a se caracterizar através de padrões diferentes daqueles estabelecidos na Semana de 22.

A repulsa a essa nova forma gerou polêmica entre os passadistas e os modernistas, pois havia uma diferença na forma como as emoções eram expressas. Todavia, isso não era um mera questão estratégica, mas apenas maneiras distintas de os indivíduos expressarem a sua sensibilidade.

São Paulo ainda estava em processo de desenvolvimento urbano, mas já criara um caráter de metrópole. O número de imigrantes crescia nas zonas rurais para o cultivo do café e nas zonas urbanas na mão-de-obra operária. São Paulo passava por diversas greves feitas pelos movimentos operários de fundamentação anarquista, porém, com a Revolução Russa de 1917, o partido comunista foi fundado e as influências do anarquismo na sociedade iam se diluindo aos poucos, e ela se tornava cada vez mais diversificada. No entanto, os modernistas de primeira hora não se alinharam com esse segmento social. Na década de 60, os modernistas se engajam no Tropicalismo, que valoriza o passado, sem tentar destruí-lo, e por meio da alegoria tratam de questões antagônicas, sem cometer ironias exageradas como antes acontecia. O sétimo capítulo traz o vocabulário crítico necessário ao entendimento de um leitor iniciante na matéria.

A obra que ora examinamos apresenta um conteúdo didático, permitindo de forma imagética aproximar o leitor de um dos movimentos artísticos mais importantes do país. A SAM foi um movimento com forte repercussão no país e a autora do livro apresenta esse conteúdo com muita clareza, de forma reflexiva, cumprindo com os objetivos de uma série editorial chamada “Princípios”.

O livro se propõe mostrar o marco do Modernismo brasileiro, juntamente com os protagonistas que buscaram a renovação nas artes plásticas, musicais e literárias, trazendo a identidade nacional e cultural brasileira. Trata-se, enfim, de uma obra rica em detalhes de forma explicativa em seu conteúdo, mostrando uma visão ampla de um movimento polêmico que veio reivindicar e representar a liberdade de expressão do artista brasileiro.

Aline Cristiane Silva
Jéssica Pereira de Souza
Lilian de Souza
Naiana Lacerda
Natália Oliveira Primo
Sofia Mariana Martins Neves

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

Rezende, Neide. A Semana de Arte Moderna. São Paulo: Ática, 1993. 80 p


[1] REZENDE, 1993, p. 49.

A Polêmica Anita Malfatti e Monteiro Lobato: Paranoia ou Mistificação?

Anita Malfatti, grande pintora que exerceu papel essencial em acontecimentos prévios à Semana de Arte Moderna de 1922, nasceu em 1889 na cidade de São Paulo, filha do engenheiro italiano naturalizado brasileiro Samuel Malfatti e da americana Betty Krug. Anita estudou Belas-Artes em Berlim e também em Nova York, onde aprimorou ideias e aprendeu um novo estilo que viria a ser sua marca registrada, estilo até hoje inconfundível e inspirador.
Depois de quatro anos de estudos na Europa, Anita Malfatti retornava ao país em 1914 e em 23 de maio do mesmo ano montava sua primeira exposição com obras de sua autoria para mostrar o seu aproveitamento. Sua obra pôde ser vista no primeiro andar da Casa Mappin, em São Paulo, e recebeu críticas positivas e publicadas em grandes veículos de comunicação[1], como por exemplo, o Estado de São Paulo de 25/05/1914:

Mas, A Srta. Malfatti não se limita a imitar superficialmente os mestres alemães. No limitado tempo em que frequentou os cursos de Berlim, adquiriu uma soma considerável de conhecimentos artísticos que vulgarmente não se encontram reunidos em pessoas de sua idade. [...] É incontestável que a Srta. Malfatti possui um belo talento. Os seus estudos têm uma espontaneidade, um vigor de expressão e uma largueza de execução, de que só dispõem os temperamentos verdadeiramente artísticos, nos quais o poder de síntese logo se revela nos menores estudos e esboços.

 No início de 1915, Anita já em Nova York e matriculada na Independence School of Art de Homer Boss, afirmou: “Entrei em pleno idílio bucólico. Pintávamos na ventania, ao sol, na chuvarada e na neblina. Eram telas e telas. (...) Era a festa da forma e a festa da cor.” Após o término dos estudos, ao regressar ao país, Anita decide novamente por uma nova exibição de suas telas, da qual resultou a famosa crítica de Monteiro Lobato.
Anita retomou os estudos em 1919 e nessa época conheceu Tarsila do Amaral. No início dos anos 1920, a artista embarcava mais uma vez, agora para Paris, em viagem de estudos. Depois de um longo tempo na Europa, Anita retorna ao Brasil no final de 1928 e o ambiente artístico era bem diferente daquele que deixara em 1923; o grupo inicial evoluíra muito, haviam surgido novos adeptos e novos movimentos. O número de artistas plásticos também crescera.
            Em 1929 abria em São Paulo sua quarta exposição individual e, em 1932, Anita dedicou-se ao ensino escolar. Tornou-se, em 1942, presidente do Sindicato dos Artistas Plásticos de São Paulo e sua primeira retrospectiva aconteceu no Museu de Arte de São Paulo em 1949. “Anita Malfatti desenhou e pintou, com maior ou menor intensidade, durante 50 anos, e sua produção só pode ter sido numerosa.” (BATISTA, 2006:11). Utilizou o carvão, o lápis e o nanquim; com a cor, realizou óleos sobre tela, ou sobre madeira; dedicou-se ainda ao pastel, a aquarela e o lápis de cor.
A exposição de Anita que gerou críticas por parte de Lobato e muita polêmica “foi o primeiro marco do Modernismo no Brasil e o fator que estimulou a constituição do grupo dos modernistas” (VIVEIROS, 2001:20).
            Após a morte de sua mãe, Anita afastou-se de todo o meio artístico durante certo tempo e, quando regressou, abriu uma nova exposição individual, esta realizada em 1955, apresentando suas criações durante sua reclusão. Mais tarde seria considerada uma das maiores pintoras brasileiras e com importância fundamental no cenário artístico brasileiro até hoje, com grande presença e estilo de pintura único e inconfundível. Anita Malfatti morreu em 1964, deixando um grande legado e sendo fonte de inspiração para toda uma geração de pintores e artistas. E ainda o é, até os dias de hoje.
             
 SOBRE O ARTIGO DE MONTEIRO LOBATO   

Em 1917 houve, numa sala da rua Líbero Badaró, uma segunda exposição da pintora Anita Malfatti, constituída por 53 trabalhos expressionistas e cubistas, incluindo O Homem Amarelo, A Estudanta Russa, A Mulher de Cabelos Verdes, etc. Monteiro Lobato escreveu sobre tal exposição o artigo “A Propósito da Exposição Malfatti”, publicado no jornal O Estado de São Paulo em 20 de dezembro de 1917, e depois em livro sob o título: “Paranoia ou Mistificação?”.  No texto, Lobato elogia o talento e a habilidade da pintora, mas critica arduamente o fato de ela ter aderido ao que ele denominou “ramos da arte caricatural”. Suas palavras com respeito à obra são as seguintes:

Há duas espécies de artista. Uma composta dos que vêem as coisas veem consequência fazem arte pura, guardados os esternos ritmos da vida, e adotados, para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. (...). A outra espécie é formada dos que veem anormalmente a natureza e a interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica das escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. (...) Estas considerações são povoadas pela exposição da Sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e cia. [O Diário de São Paulo, dez/1917]

É importante ressaltar que, antes da publicação do artigo de Monteiro Lobato, essa exposição de Anita de 1917 foi comentada em vários veículos de grande comunicação, e, um deles não a elogia abertamente, mas não deixa de apreciar e denotar informações positivas a respeito da sua arte, o que também aconteceu em sua primeira exposição realizada na Casa Mappin em 1914 em que Malfatti é vista como uma estudante de artes que tem noção daquilo que cria.
Após a publicação da crítica do criador de Sítio do Pica-Pau Amarelo, algumas das telas vendidas foram devolvidas e outras foram até destruídas a bengaladas: “Uma jovem de 21 anos, tímida, mas corajosa, viu suas obras serem atingidas por uma bengala, numa reação de ira, agressão e desconhecimento diante do novo que ali se apresentava” (CAMARGO, 2009:15).
            Na imprensa, no geral, a reação  foi bastante interessante: não apareceram defesas nem ataques violentos. Nestor Rangel Pestana, amigo da pintora e de sua família, publicou seu ponto de vista a respeito da carreira de Anita Malfatti no jornal O Estado de São Paulo:                    
Atualmente a talentosa pintora expõe uma numerosa coleção de telas no salão do Clube Comercial. Estes trabalhos acusam várias tendências em conflito, pois a jovem pintora parece ser por demais sensível às influências que se pretendem reformadoras da arte, e aceita sem maior exame até as extravagâncias de pseudo-escolas que caem no domínio da patologia. (BATISTA, 1985:88)

            Monteiro Lobato afirma que todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da latitude. Pode-se entender que, de acordo com o escritor, a arte não é passível de mudanças, inovações. Tal afirmação pode ser contestada se analisarmos a história da arte, e então perceberemos que a arte está sempre em processo de transição e mudanças, e o que faz com que tais mudanças ocorram, são as diferentes formas de percepção que os artistas têm das diferentes formas e modos de pintura.      
Lobato, utilizando-se de uma visão conservadora para criticar a pintura inovadora e modernista de Anita, ataca com ferocidade sua obra, criticando também toda essa inovação e ruptura com os padrões artísticos que começava a surgir e que não era vista com bons olhos. Havia a necessidade de se prender aos estereótipos e padrões construídos ao longo dos anos por renomados pintores e artistas europeus. Não que tais padrões devessem se extinguir e renovar totalmente, mas a criação de exploração de novas vertentes ligadas à arte é sempre necessária, até para ampliar o “horizonte” mental do ser humano no que se refere ao seu processo criativo.
Deve-se verificar que, como o título sugere, “A Propósito da Exposição Malfatti”, serviu pra deixar evidenciado sobre as mudanças que estavam por vir nos âmbitos artístico e literário brasileiros, e que tais mudanças não refletiam de forma alguma o desejo da sociedade brasileira à época. Seria esse o “estopim do modernismo”? (BRITO, 1978, p.40) O que poderia, afinal, ser considerado o estopim do modernismo? A crítica feroz de Monteiro Lobato ou a pintura modernista de Malfatti?
A crítica, em si, mais impressiona do que remete quanto à qualidade das telas e o estilo de pintura da artista. Podemos perceber que, por exemplo, se as obras não quebrassem com os modelos já pré-definidos de arte, não existiria tal crítica, muito menos um anseio maior e mais latente por mudanças. Quando dizemos que Anita foi uma das precursoras do movimento modernista brasileiro (e por que não da Semana de Arte Moderna?) dizemos que suas telas e seu estilo, mesmo que não diretamente, indagou e incutiu a necessidade de “coisas novas” e foi a “gota d’água” para que vários influentes e amantes da arte se juntassem em busca de algo completamente novo e, porque não, nacional.
O primeiro a se manifestar a favor da pintora foi Oswald de Andrade, seguido por outros modernistas. Mário de Andrade mais tarde escreveria que considerava Anita “dos mais inquietos, dos mais elevados e sérios temperamentos artísticos deste nosso dia brasileiro” (in A Manhã, de 31/07/1926).
O escritor Menotti del Picchia só soube da polêmica gerada por um artigo de Monteiro Lobato fixado em livro no ano de 1919. Ele se manifestou, pela imprensa, em favor de Anita Malfatti.
[...] Comigo, milhares de Paulistas, aprioristicamente, assim julgaram essa mulher singular que, quando não tivesse outro mérito, teria o de haver rompido, com audácia de arte independente e nova, a nossa sonolência de retardatários e paralíticos da pintura (BATISTA, 1985:87). [...] Quando defrontei as telas de Anita, comecei a matutar se a acidez de Lobato era justa, e acabei achando-o cruel e exagerado. (BATISTA, 1985:87)

Faz-se considerável lembrar que toda essa crítica veio de alguém que estava de fora do movimento, que não tinha visão e amplitude que era almejada pelos modernistas, e é possível afirmar que, em virtude da defesa de um estilo centrado, como já mencionado anteriormente, não foram feitas as considerações devidas à Malfatti. Basta refletir sobre a citação abaixo:           
Apelando para uma argumentação desrespeitosa para com a artista – na época uma mulher que buscava a profissionalização e com experiência no exterior (o que não seria pouca coisa para uma mulher brasileira, com defeito congênito, na segunda década do século passado) – transformaram essa profissional numa mulher apenas insegura, capaz de colocar entraves à sua própria produção a partir de uma crítica de jornal. (CHIARELLI, 2008:172).

            Monteiro Lobato, mesmo de fora do movimento, exercia um papel importante na elite paulista da época e gozava de extremada reputação, daí a enorme repercussão da crítica contra a artista. A causa de ataques tão atrozes por parte de Lobato foi à defesa da permanência de um estilo estético conservador (e porque não “antimodernista?”), e, devido a tais julgamentos, o estilo de Anita nunca mais seria o mesmo. O deslumbramento causado pelas obras de Anita ocorreu com muito mais intensidade no início de sua carreira, e suas obras ainda tiveram mais exposição devido a tal ferrenho artigo. E, inclusive, não podemos dizer se alguma mágoa pessoal foi curada, uma vez que Anita foi responsável pelas ilustrações de um dos livros de Lobato alguns anos depois, e o próprio Lobato reconheceu suas características e estilo modernistas posteriormente. Hoje esse cenário de estranhamento referente às obras de Malfatti praticamente não existe, sendo ela considerada umas das maiores artistas que o país já teve.
Ana Paula Santos
 Chaíne Melo
 Eduardo Santos
 Elaine Guimarães
Jeniffer Clemente

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro: Antecedentes da Semana de Arte Moderna. 5.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: IBM Brasil, 1985.

BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço: biografia e obra. São Paulo: Editora 34 - EDUSP, 2006.

CAMARGO, Ani Perri. Anita Malfatti: a festa da cor. São Paulo: Terceiro nome, 2009.

CHIARELLI, Tadeu. Tropical, de Anita Malfatti: reorientando uma velha questão. São Paulo: Novos Estudos Cebrap, 2008, nº80. 

PROENÇA, Graça.  História da Arte. 7.ed. São Paulo: Ática, 1996.

REZENDE, Neide. A Semana de Arte Moderna. Coleção Princípios. São Paulo: Ática, 1993.

VIVEIROS, Ricardo. Anita Malfatti revisitada: a festa da forma, a festa da cor. São Paulo: Associação Brasileira da Indústria Gráfica, (set./out.), 2001.


[1] Sobre o papel da imprensa na divulgação do projeto estético modernista, veja-se a obra A Semana de Arte Moderna, de Neide Duarte.