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domingo, 17 de junho de 2012

Interseções da poesia e da pintura no Modernismo brasileiro

A Semana de Arte Moderna aconteceu em São Paulo no ano de 1922, entre os dias 13 a 17 de Fevereiro, no Teatro Municipal. O movimento representou uma mudança na estética das artes em todas as perspectivas.
Os artistas participantes do movimento tinham como ideologia o desenvolvimento do “novo”, a ruptura com a tradicional criação de quaisquer obras de arte, ou seja, a mudança da estética e dos padrões preestabelecidos como aceitáveis para a produção artística. Esta proposta deu-se pelo anseio de renovação do ambiente artístico e cultural do país, com a valorização da cultura, arquitetura, literatura e música nacional.
O Brasil, por ser um país colonizado, possui historicamente a cultura miscigenada. Logo, a ruptura dos padrões idealistas, sentimentalistas da estética estrangeira, principalmente europeia, era necessária para a própria consolidação identidária brasileira, bem como a consolidação de um novo conceito de arte.
 Contudo, como toda reforma causa vários impactos em toda sociedade, a compreensão e a reação das pessoas, acostumadas com a forma clássica de produção de arte, não foram boas. Os estranhamentos, às novas propostas de estética, surgiram logo no início.
Diante desse grande cenário, diferente a todas as formas de expressão artística da época, a Semana de Arte Moderna culminou com a incompreensão, já mencionada, e com uma certa insatisfação das pessoas que partilhavam o senso comum.
Logo na abertura do evento, o poema, “Os Sapos” de Manuel Bandeira, declamado por Ronald Carvalho, foi desaprovado pela plateia com muitas vaias gritos e até coaxos. Vejamos, a seguir, a transcrição do poema:

Os Sapos

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinquenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."

Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei!"- "Foi!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte é como
Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo".

Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".

Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é

Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...”

Em primeira instância fica perceptível a diferença estética na construção do poema em comparação aos românticos e parnasianos. Isso se prova pela abordagem narrativa em um texto tipicamente lírico e disposto graficamente em versos. Estas características são predominantemente utilizadas na poesia moderna, que busca a abolição dessas regras e procura a novidade e a originalidade. Além disso, observamos outro traço modernista no texto: a marca da liberdade de estilo e a aproximação com a linguagem oral.
O texto é construído a partir de uma consciência da metalinguagem, que, segundo o dicionário Houaiss, é a “linguagem (natural ou formalizada) que serve para descrever ou falar sobre uma outra linguagem, natural ou artificial”, ou seja, é a propriedade que tem a língua de voltar-se para si mesma. Várias são as evidências de que se trata de um metapoema, ou um poema concebido para falar do fenômeno poema. Isto se nota quando se associa, por meio da metáfora, o sapo tanoeiro ao poeta parnasiano. Nota-se uma semelhança entre o tom jocoso do poema, ao fazer do poeta parnasiano um sapo, e a afirmação de Oswald de Andrade, em um dos seus manifestos, de que o poeta parnasiano é uma máquina de fazer poemas.
Pensando nas pessoas projetadas pelo discurso, vemos que elas são tematizadas como poetas e figurativizadas como sapos, tais como: sapo-boi, sapo-tanoeiro, sapo-pipa e sapo-cururu. Através desta figurativização, a metáfora metonímica, que correlaciona as características dos diversos tipos de “sapos” aos diversos tipos de poetas, pode-se perceber a crítica do eu-lírico, no primeiro momento do texto, aos poetas parnasianos presos a padronizações e normatizações.
No segundo momento do texto, o eu-lírico, através do sapo-cururu, figurativizou o poeta não parnasiano ou moderno. A escolha dessa espécie de sapo, para referenciar o poeta moderno, deve-se justamente por ele ser mais comum na fauna brasileira, ou seja, mais conhecido dentro da cultura popular (Cf. BARROS, 2001, p. 64). Em paradoxo, os sapos escolhidos para adjetivarem os poetas parnasianos são os tipos menos conhecidos, o que vai ao encontro da prática parnasiana em utilizar palavras pouco comuns.
A crítica à poesia parnasiana é formada por meio de expressões ao longo do texto, tais como: parnasiano aguado, cancioneiro bem martelado, comer os hiatos, termos cognatos, verso bom, frumento sem joio, consoantes de apoio, norma, forma, lavor de joalheiro etc. A presença de palavras eruditas, difíceis e pouco utilizadas, permeando todo o poema, também contribui para a constituição desse percurso figurativo, uma vez que o uso de tais palavras era uma prática comum entre os poetas parnasianos. Outros exemplos de tais vocábulos, no poema, são: enfunando, penumbra, frumento, clame, lavor, estatuário, vede, perau e transido.
Tal crítica a estas expressões tipicamente parnasianas foi feita por Brandão (1992, p. 122), em que, segundo ele, os elementos abaixo são encontrados nos respectivos versos:
(...) a perfeição: (Meu cancioneiro / É bem martelado); o purismo (O meu verso é bom /Frumento sem joio); o preciosismo (Que arte! E nunca rimo / Os termos cognatos); o enrijecimento formal (Vai por cinquenta anos / Que lhes dei a norma[..]); a supervalorização das poéticas (Não há mais poesia / mas há artes poéticas);a minúcia do trabalho poético (A grande arte é como / Lavor de joalheiro), (...), etc.

Inteligentemente, o eu-lírico deixa claro que a poética anterior só era considerada “boa” devido às normas e formas utilizadas por todos os autores da época, ou seja, havia um padrão a ser seguido, e as poesias que estivessem fora dele não poderiam ser consideradas obras de arte. Observa-se ainda, no texto, que o eu-lírico se posiciona sobre essa forma de pensar, fazer e aceitar a poesia. É o que os dois últimos versos da sétima estrofe afirmam: “Não há mais poesia, / mas há artes poéticas...”. Dizer isso é o mesmo que afirmar que a poesia era fruto de formas e regras, logo poderia ser considerada como uma didática de aprendizado para a produção de arte; é como se estabelecesse a forma certa ou errada para a produção. Além disso, em outra parte do poema, mais exatamente nos dois últimos versos da nona estrofe: “- A grande arte é como / Lavor de joalheiros.”, verificamos a permanente crítica do eu-lírico frente às normatizações e formas para a criação da poesia.
A proposta da poesia moderna é totalmente diferente da poesia parnasiana, que tem como principal característica a valorização da estética e a perfeição, bem como o uso da linguagem rebuscada e o vocabulário culto valorizando a metrificação. Os modernistas, por sua vez, defendem a metalinguagem, a simplicidade, o cotidiano, e a variedade temática, e utiliza até o sapo como objeto-lírico. Pela escola literária anterior, seria um repúdio e impossível fazer poemas sobre tal animal cuja origem nos recorda características negativas e ruins. A utilização de uma figura tão grotesca quanto um sapo vai ainda ao encontro da poética de Manuel Bandeira, uma vez que o autor defendia que a poesia “está em tudo – tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas” (BANDEIRA, 1984, p. 19).
Bandeira evidencia que a arte poética é feita por ela mesma, ou seja, a proposta é promover a ruptura com a estética figurativista realista, cuja característica é retratar em sua integridade, sem demais possibilidades de interpretações, e a consolidação da criação moderna, original e singular da poesia e arte moderna.
A intertextualidade é importante fator de construção do sentido. Conforme Discini (2004, p. 11), “o texto-base entra como condição de construção de sentido do discurso da variante intertextual”. Por isso, intertextualizamos o poema com a pintura, através de uma das obras do pintor Vitor Meireles, que foi influenciado pelos artistas europeus, pela pintura histórica. O quadro mais importante foi feito em 1861, intitulado “A primeira missa no Brasil”, onde podemos, facilmente, perceber o que o pintor quis expressar. O país, naqueles dias, passava por uma intensa revolta, pois a Corte Portuguesa estava no Brasil, por causa do processo de colonização. Pela pintura, verifica-se a influência da nova sociedade burguesa. A busca por elementos que caracterizavam o Brasil, tais como: o índio e a paisagem tropical, demonstram a invasão dos ideais portugueses em um local que já possuía sua própria identidade. Apesar da cultura ainda não estar consolidada, a intenção era de mostrar as características brasileiras, a arte brasileira. Dessa forma, os artistas brasileiros começaram á buscar uma identidade, liberdade de expressão e diferentes caminhos sem definir ou seguir padrões e normatizações artísticas.
Figura 1

Em consonância com as obras citadas, temos também: A Cuca, tela do início do ano de 1924, considerada um prenúncio da Antropofagia na obra de Tarsila do Amaral. Esta conclusão deve-se a distorção da disposição gráfica de cada figura, uma vez que cada uma toma o lugar de outra, confundindo-nos os planos do quadro.
Esta distorção da disposição gráfica das figuras do quadro estabelece um paradoxo com o quadro anterior, onde todos os planos são bem definidos e separados, ficando clara a intenção do autor. Esse tipo de intencionalidade não é característico com as obras modernistas, que justamente buscam o contrário, ou seja, a liberdade na produção estética.
A própria Tarsila referiu-se a esta obra dizendo que pretendia pintar quadros “bem brasileiros”. Descreveu-a ainda como “um bicho esquisito, no meio do mato, com um sapo, um tatu e outro bicho inventado”.
As obras possuem várias características que são básicas na maioria de suas pinturas e que fogem do padrão realista; como o uso de figuras geométricas, cores fundamentais e vivas, linhas de contorno, simetria, abordagem de temas sociais, cotidianos e paisagens do Brasil entre outros.
Ao analisar este quadro, temos a percepção dos esquemas figura-fundo, distâncias relativas, representação de perspectiva, as relações de cores complementares, noções de volume nos objetos e o esquema construtivo da imagem – o bicho Cuca, elemento principal da obra, está exatamente sobre a linha da seção áurea de um retângulo.
Figura 2
Heloísa Porto
Heverton Ferreira
Layra Dalforne
Tatiana Oliveira
Talita Maciel

Referências bibliográficas

_____. A Cuca. 1924. Óleo sobre tela. 73 x 100cm. Museu de Grenoble, França. Reprod.: color; 16 x 13 cm em papel. In: Tarsila anos 20. Curadoria e pesquisa: Sônia Salzstein. São Paulo: SESI, 1997.
AMARAL, T. Abaporu. 1928. Óleo sobre tela 85 x 73cm. Coleção particular. Reprod.: color; 10 x 12 cm em mídia eletrônica. In: Tarsila do Amaral. Obras, Biografia, História. Disponível em: http://www.tarsiladoamaral.com.br. Acesso em 8 jun. 2012.
BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.___. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Humanitas, 2001.
BRANDÃO. Roberto de Oliveira. Poemas sobre a poesia na literatura brasileira. São Paulo: USP (Tese de Livre Docência), 1992.
DISCINI, Norma. Intertextualidade e conto maravilhoso. São Paulo: Humanitas, 2004.
FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática, 1996.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

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