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domingo, 17 de junho de 2012

A Polêmica Anita Malfatti e Monteiro Lobato: Paranoia ou Mistificação?

Anita Malfatti, grande pintora que exerceu papel essencial em acontecimentos prévios à Semana de Arte Moderna de 1922, nasceu em 1889 na cidade de São Paulo, filha do engenheiro italiano naturalizado brasileiro Samuel Malfatti e da americana Betty Krug. Anita estudou Belas-Artes em Berlim e também em Nova York, onde aprimorou ideias e aprendeu um novo estilo que viria a ser sua marca registrada, estilo até hoje inconfundível e inspirador.
Depois de quatro anos de estudos na Europa, Anita Malfatti retornava ao país em 1914 e em 23 de maio do mesmo ano montava sua primeira exposição com obras de sua autoria para mostrar o seu aproveitamento. Sua obra pôde ser vista no primeiro andar da Casa Mappin, em São Paulo, e recebeu críticas positivas e publicadas em grandes veículos de comunicação[1], como por exemplo, o Estado de São Paulo de 25/05/1914:

Mas, A Srta. Malfatti não se limita a imitar superficialmente os mestres alemães. No limitado tempo em que frequentou os cursos de Berlim, adquiriu uma soma considerável de conhecimentos artísticos que vulgarmente não se encontram reunidos em pessoas de sua idade. [...] É incontestável que a Srta. Malfatti possui um belo talento. Os seus estudos têm uma espontaneidade, um vigor de expressão e uma largueza de execução, de que só dispõem os temperamentos verdadeiramente artísticos, nos quais o poder de síntese logo se revela nos menores estudos e esboços.

 No início de 1915, Anita já em Nova York e matriculada na Independence School of Art de Homer Boss, afirmou: “Entrei em pleno idílio bucólico. Pintávamos na ventania, ao sol, na chuvarada e na neblina. Eram telas e telas. (...) Era a festa da forma e a festa da cor.” Após o término dos estudos, ao regressar ao país, Anita decide novamente por uma nova exibição de suas telas, da qual resultou a famosa crítica de Monteiro Lobato.
Anita retomou os estudos em 1919 e nessa época conheceu Tarsila do Amaral. No início dos anos 1920, a artista embarcava mais uma vez, agora para Paris, em viagem de estudos. Depois de um longo tempo na Europa, Anita retorna ao Brasil no final de 1928 e o ambiente artístico era bem diferente daquele que deixara em 1923; o grupo inicial evoluíra muito, haviam surgido novos adeptos e novos movimentos. O número de artistas plásticos também crescera.
            Em 1929 abria em São Paulo sua quarta exposição individual e, em 1932, Anita dedicou-se ao ensino escolar. Tornou-se, em 1942, presidente do Sindicato dos Artistas Plásticos de São Paulo e sua primeira retrospectiva aconteceu no Museu de Arte de São Paulo em 1949. “Anita Malfatti desenhou e pintou, com maior ou menor intensidade, durante 50 anos, e sua produção só pode ter sido numerosa.” (BATISTA, 2006:11). Utilizou o carvão, o lápis e o nanquim; com a cor, realizou óleos sobre tela, ou sobre madeira; dedicou-se ainda ao pastel, a aquarela e o lápis de cor.
A exposição de Anita que gerou críticas por parte de Lobato e muita polêmica “foi o primeiro marco do Modernismo no Brasil e o fator que estimulou a constituição do grupo dos modernistas” (VIVEIROS, 2001:20).
            Após a morte de sua mãe, Anita afastou-se de todo o meio artístico durante certo tempo e, quando regressou, abriu uma nova exposição individual, esta realizada em 1955, apresentando suas criações durante sua reclusão. Mais tarde seria considerada uma das maiores pintoras brasileiras e com importância fundamental no cenário artístico brasileiro até hoje, com grande presença e estilo de pintura único e inconfundível. Anita Malfatti morreu em 1964, deixando um grande legado e sendo fonte de inspiração para toda uma geração de pintores e artistas. E ainda o é, até os dias de hoje.
             
 SOBRE O ARTIGO DE MONTEIRO LOBATO   

Em 1917 houve, numa sala da rua Líbero Badaró, uma segunda exposição da pintora Anita Malfatti, constituída por 53 trabalhos expressionistas e cubistas, incluindo O Homem Amarelo, A Estudanta Russa, A Mulher de Cabelos Verdes, etc. Monteiro Lobato escreveu sobre tal exposição o artigo “A Propósito da Exposição Malfatti”, publicado no jornal O Estado de São Paulo em 20 de dezembro de 1917, e depois em livro sob o título: “Paranoia ou Mistificação?”.  No texto, Lobato elogia o talento e a habilidade da pintora, mas critica arduamente o fato de ela ter aderido ao que ele denominou “ramos da arte caricatural”. Suas palavras com respeito à obra são as seguintes:

Há duas espécies de artista. Uma composta dos que vêem as coisas veem consequência fazem arte pura, guardados os esternos ritmos da vida, e adotados, para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. (...). A outra espécie é formada dos que veem anormalmente a natureza e a interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica das escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. (...) Estas considerações são povoadas pela exposição da Sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e cia. [O Diário de São Paulo, dez/1917]

É importante ressaltar que, antes da publicação do artigo de Monteiro Lobato, essa exposição de Anita de 1917 foi comentada em vários veículos de grande comunicação, e, um deles não a elogia abertamente, mas não deixa de apreciar e denotar informações positivas a respeito da sua arte, o que também aconteceu em sua primeira exposição realizada na Casa Mappin em 1914 em que Malfatti é vista como uma estudante de artes que tem noção daquilo que cria.
Após a publicação da crítica do criador de Sítio do Pica-Pau Amarelo, algumas das telas vendidas foram devolvidas e outras foram até destruídas a bengaladas: “Uma jovem de 21 anos, tímida, mas corajosa, viu suas obras serem atingidas por uma bengala, numa reação de ira, agressão e desconhecimento diante do novo que ali se apresentava” (CAMARGO, 2009:15).
            Na imprensa, no geral, a reação  foi bastante interessante: não apareceram defesas nem ataques violentos. Nestor Rangel Pestana, amigo da pintora e de sua família, publicou seu ponto de vista a respeito da carreira de Anita Malfatti no jornal O Estado de São Paulo:                    
Atualmente a talentosa pintora expõe uma numerosa coleção de telas no salão do Clube Comercial. Estes trabalhos acusam várias tendências em conflito, pois a jovem pintora parece ser por demais sensível às influências que se pretendem reformadoras da arte, e aceita sem maior exame até as extravagâncias de pseudo-escolas que caem no domínio da patologia. (BATISTA, 1985:88)

            Monteiro Lobato afirma que todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da latitude. Pode-se entender que, de acordo com o escritor, a arte não é passível de mudanças, inovações. Tal afirmação pode ser contestada se analisarmos a história da arte, e então perceberemos que a arte está sempre em processo de transição e mudanças, e o que faz com que tais mudanças ocorram, são as diferentes formas de percepção que os artistas têm das diferentes formas e modos de pintura.      
Lobato, utilizando-se de uma visão conservadora para criticar a pintura inovadora e modernista de Anita, ataca com ferocidade sua obra, criticando também toda essa inovação e ruptura com os padrões artísticos que começava a surgir e que não era vista com bons olhos. Havia a necessidade de se prender aos estereótipos e padrões construídos ao longo dos anos por renomados pintores e artistas europeus. Não que tais padrões devessem se extinguir e renovar totalmente, mas a criação de exploração de novas vertentes ligadas à arte é sempre necessária, até para ampliar o “horizonte” mental do ser humano no que se refere ao seu processo criativo.
Deve-se verificar que, como o título sugere, “A Propósito da Exposição Malfatti”, serviu pra deixar evidenciado sobre as mudanças que estavam por vir nos âmbitos artístico e literário brasileiros, e que tais mudanças não refletiam de forma alguma o desejo da sociedade brasileira à época. Seria esse o “estopim do modernismo”? (BRITO, 1978, p.40) O que poderia, afinal, ser considerado o estopim do modernismo? A crítica feroz de Monteiro Lobato ou a pintura modernista de Malfatti?
A crítica, em si, mais impressiona do que remete quanto à qualidade das telas e o estilo de pintura da artista. Podemos perceber que, por exemplo, se as obras não quebrassem com os modelos já pré-definidos de arte, não existiria tal crítica, muito menos um anseio maior e mais latente por mudanças. Quando dizemos que Anita foi uma das precursoras do movimento modernista brasileiro (e por que não da Semana de Arte Moderna?) dizemos que suas telas e seu estilo, mesmo que não diretamente, indagou e incutiu a necessidade de “coisas novas” e foi a “gota d’água” para que vários influentes e amantes da arte se juntassem em busca de algo completamente novo e, porque não, nacional.
O primeiro a se manifestar a favor da pintora foi Oswald de Andrade, seguido por outros modernistas. Mário de Andrade mais tarde escreveria que considerava Anita “dos mais inquietos, dos mais elevados e sérios temperamentos artísticos deste nosso dia brasileiro” (in A Manhã, de 31/07/1926).
O escritor Menotti del Picchia só soube da polêmica gerada por um artigo de Monteiro Lobato fixado em livro no ano de 1919. Ele se manifestou, pela imprensa, em favor de Anita Malfatti.
[...] Comigo, milhares de Paulistas, aprioristicamente, assim julgaram essa mulher singular que, quando não tivesse outro mérito, teria o de haver rompido, com audácia de arte independente e nova, a nossa sonolência de retardatários e paralíticos da pintura (BATISTA, 1985:87). [...] Quando defrontei as telas de Anita, comecei a matutar se a acidez de Lobato era justa, e acabei achando-o cruel e exagerado. (BATISTA, 1985:87)

Faz-se considerável lembrar que toda essa crítica veio de alguém que estava de fora do movimento, que não tinha visão e amplitude que era almejada pelos modernistas, e é possível afirmar que, em virtude da defesa de um estilo centrado, como já mencionado anteriormente, não foram feitas as considerações devidas à Malfatti. Basta refletir sobre a citação abaixo:           
Apelando para uma argumentação desrespeitosa para com a artista – na época uma mulher que buscava a profissionalização e com experiência no exterior (o que não seria pouca coisa para uma mulher brasileira, com defeito congênito, na segunda década do século passado) – transformaram essa profissional numa mulher apenas insegura, capaz de colocar entraves à sua própria produção a partir de uma crítica de jornal. (CHIARELLI, 2008:172).

            Monteiro Lobato, mesmo de fora do movimento, exercia um papel importante na elite paulista da época e gozava de extremada reputação, daí a enorme repercussão da crítica contra a artista. A causa de ataques tão atrozes por parte de Lobato foi à defesa da permanência de um estilo estético conservador (e porque não “antimodernista?”), e, devido a tais julgamentos, o estilo de Anita nunca mais seria o mesmo. O deslumbramento causado pelas obras de Anita ocorreu com muito mais intensidade no início de sua carreira, e suas obras ainda tiveram mais exposição devido a tal ferrenho artigo. E, inclusive, não podemos dizer se alguma mágoa pessoal foi curada, uma vez que Anita foi responsável pelas ilustrações de um dos livros de Lobato alguns anos depois, e o próprio Lobato reconheceu suas características e estilo modernistas posteriormente. Hoje esse cenário de estranhamento referente às obras de Malfatti praticamente não existe, sendo ela considerada umas das maiores artistas que o país já teve.
Ana Paula Santos
 Chaíne Melo
 Eduardo Santos
 Elaine Guimarães
Jeniffer Clemente

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro: Antecedentes da Semana de Arte Moderna. 5.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: IBM Brasil, 1985.

BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço: biografia e obra. São Paulo: Editora 34 - EDUSP, 2006.

CAMARGO, Ani Perri. Anita Malfatti: a festa da cor. São Paulo: Terceiro nome, 2009.

CHIARELLI, Tadeu. Tropical, de Anita Malfatti: reorientando uma velha questão. São Paulo: Novos Estudos Cebrap, 2008, nº80. 

PROENÇA, Graça.  História da Arte. 7.ed. São Paulo: Ática, 1996.

REZENDE, Neide. A Semana de Arte Moderna. Coleção Princípios. São Paulo: Ática, 1993.

VIVEIROS, Ricardo. Anita Malfatti revisitada: a festa da forma, a festa da cor. São Paulo: Associação Brasileira da Indústria Gráfica, (set./out.), 2001.


[1] Sobre o papel da imprensa na divulgação do projeto estético modernista, veja-se a obra A Semana de Arte Moderna, de Neide Duarte.

3 comentários:

  1. Bom trabalho, bem sucinto e de fácil leitura.... Parabéns

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Além de postarem uma obra de Tarsila em estudo sobre Malfatti, ainda postam informções icoerentes, tais como, "Anita retomou os estudos em 1919" e ao citarem a crítica de Lobato usam um texto deurpado que foi publicado no livro de Brito, História do Modernismo Brasileiro, cuja 1º edição é de 1958 e, ao invés de referenciarem como "apud", postam a referência [O Diário de São Paulo, dez/1917]
      de Lobato e o esquecem na lista de referência!
      BOM TRABALHO, NEM QUERO IMAGINAR O RUIM!

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